Combate Classista

Teoria Marxista, Política e História contemporânea.

domingo, 11 de abril de 2010

Manuscritos Econômico-Filosóficos

Karl Marx

http://www.marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/cap01.htm
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Prefácio

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Já anunciei, no Deutsch-Franzoesischer Jahrbücher , uma crítica do Direito e da Ciência Política sob a forma de crítica à filosofia Hegeliana do Direito. Entretanto, ao preparar o trabalho a ser publicado, ficou evidente que seria assaz inconveniente uma combinação da crítica dirigida somente à teoria especulativa com a crítica de vários assuntos; isso tolheria a exposição da argumentação e tornaria esta mais difícil de ser acompanhada. Ademais, eu só poderia comprimir tal riqueza e diversidade de assuntos em um único livro se escrevesse em estilo aforismático, e uma apresentação assim aforismática daria a impressão de sistematização arbitrária. Por conseguinte, publicarei minha crítica do Direito, Moral, Política, etc., em diversos opúsculos separados, e, por fim, tentarei, em uma obra a parte, apresentar o conjunto inter-relacionado, mostrando as relações entre as várias partes e apresentando uma crítica do tratamento especulativo desse material. É por isso que, no presente trabalho, as relações da Economia Política com o Estado, o Direito, a Moral, a vida civil, etc., são apenas abordadas na medida em que a própria Economia Política trata desses assuntos.

Não é necessário assegurar ao leitor familiarizado com a Economia Política que minhas conclusões são o fruto de uma análise inteiramente empírica, baseadas em um meticuloso estudo crítico da Economia Política.

É claro que além de aos socialistas franceses e ingleses também recorri a trabalhos de socialistas alemães. Mas as obras alemães originais e importantes a este respeito - fora as de Weitling - limitam-se aos ensaios publicados por Hess no Einundzwanzib Bogen , e ao de Engels, "Umrisse zur Kritik der Nationaloekonomie" no Deutsch-Franzoesischer Jahrbücher. Nesta última publicação, eu mesmo indiquei, de forma bastante genérica, os elementos básicos do presente trabalho.

A crítica positiva, humanista e naturalista tem início com Feuerbach. Os trabalhos menos espetaculares de Feuerbach são os mais certos, profundos, extensos e duradouros em sua influência; eles são os únicos, desde a Fenomenologia e a Lógica de Hegel que contêm uma verdadeira revolução teórica.

Ao contrário dos teólogos críticos de nossa época, considerei o capítulo final do presente trabalho, uma exposição crítica da dialética hegeliana e de sua filosofia geral, como absolutamente essencial, pois isso ainda não foi feito. Esta falta de meticulosidade não é acidental, pois o teólogo crítico continua a ser um teólogo. Ele tem de partir, seja de certos pressupostos da filosofia aceita como oficial, ou então, se no decurso da crítica e como resultado de descobertas de outras pessoas surgirem-lhe na mente dúvidas acerca dos pressupostos filosóficos, abandona-os de forma covarde e sem justificativa, abstrai a partir deles, e demonstra ao mesmo tempo dependência servil face a elas e seu ressentimento a essa dependência de maneira negativa, inconsciente e sofística.

Olhada mais de perto, a crítica teológica, que foi no começo do movimento um fator genuinamente progressista, é vista como sendo, em última análise, nada mais que a culminação e conseqüência do antigo transcendentalismo filosófico, e especialmente hegeliano, deformado numa caricatura teológica. Descreverei alhures, com maior minúcia, esse ato interessante de justiça histórica, essa nêmese que agora destina a teologia, sempre o setor infectado da filosofia, a espelhar em si a mesma dissolução negativa da filosofia, isto é, o processo de sua decadência.

Karl Marx, 1844



Primeiro Manuscrito

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Trabalho Estranhado


(XXII) Partimos dos pressupostos da Economia Política. Aceitamos sua terminologia e suas leis. Aceitamos como premissas a propriedade privada, a separação do trabalho, capital e terra, assim como também de salários, lucro e arrendamento, a divisão do trabalho, a competição, o conceito de valor de troca, etc. Com a própria economia política, usando suas próprias palavras, demonstramos que o trabalhador afunda até um nível de mercadoria, e uma mercadoria das mais deploráveis; que a miséria do trabalhador aumenta com o poder e o volume de sua produção; que o resultado forçoso da competição é o acumulo de capital em poucas mãos, e assim uma restauração do monopólio da forma mais terrível; e, por fim, que a distinção entre capitalista e proprietário de terras, e entre trabalhador agrícola e operário, tem de desaparecer, dividindo-se o conjunto da sociedade em duas classes de possuidores de propriedades e trabalhadores sem propriedades.

A economia Política parte do fato da propriedade privada; não o explica. Ela concebe o processo material da propriedade privada, como ocorre na realidade, por meio de fórmulas abstratas e gerais que, então, servem como leis. Ela não compreende essas leis; isto é, ela não mostra como surgem da natureza da propriedade privada. A Economia Política não dá nenhuma explicação da base para a distinção entre trabalho e capital, entre capital e terra. Quando, por exemplo, a relação entre salários e lucros é definida, isso é explicado em função dos interesses dos capitalistas; por outras palavras, o que devia ser explicado é admitido. Analogamente, a competição é referida a todos os pontos e explicada em função das condições externas. A Economia Política nada nos diz a respeito da medida em que essas condições externas, e aparentemente acidentais, são simplesmente a expressão de uma evolução necessária. Vimos como a própria troca se afigura um fato acidental. As únicas forças propulsoras reconhecidas pela Economia Política são a avareza e a guerra entre os gananciosos, a competição.

Justamente por deixar a Economia Política de entender as interconexões dentro desse movimento, foi possível opor a doutrina de competição à de monopólio, a doutrina de liberdade da profissão à das guildas, a doutrina de divisão da propriedade imobiliária a dos latifúndios; pois a competição, liberdade de ocupação e divisão da propriedade imobiliária foram concebidas tão-somente como conseqüências fortuitas produzidas pela vontade e pela força, em vez de conseqüências necessárias, inevitáveis e naturais do monopólio, do sistema de guildas e da propriedade feudal.

Por isso, temos agora de apreender a ligação real entre todo esse sistema de alienação - propriedade privada, ganância, separação entre trabalho, capital e terra, troca e competição, valor e desvalorização do homem, monopólio e competição - e o sistema do dinheiro.

Não iniciaremos nossa exposição, como o faz o economista, por uma legendária situação primitiva. Uma tal situação arcaica nada explica; simplesmente afasta a pergunta para uma distância turva e enevoada. Ela afirma como fato ou acontecimento o que deveria deduzir, ou seja, a relação necessária entre duas coisas; por exemplo, entre a divisão do trabalho e a troca. Da mesma maneira, a teologia explica a origem do mal pela queda do homem; isto é, ela assegura como fato histórico aquilo que deveria elucidar.

Partiremos de um fato econômico contemporâneo. O trabalhador fica mais pobre à medida que produz mais riqueza e sua produção cresce em força e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria ainda mais barata à medida que cria mais bens. A desvalorização do mundo humano aumenta na razão direta do aumento de valor do mundo dos objetos. O trabalho não cria apenas objetos; ele também se produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e, deveras, na mesma proporção em que produz bens.

Esse fato simplesmente subentende que o objeto produzido pelo trabalho, o seu produto, agora se lhe opõe como um ser estranho, como uma força independente do produtor. O produto do trabalho humano é trabalho incorporado em um objeto e convertido em coisa física; esse produto é uma objetificação do trabalho. A execução do trabalho é simultaneamente sua objetificação. A execução do trabalho aparece na esfera da Economia Política como uma perversão do trabalhador, a objetificação como uma perda e uma servidão ante o objeto, e a apropriação como alienação.

A execução do trabalho aparece tanto como uma perversão que o trabalhador se perverte até o ponto de passar fome. A objetificação aparece tanto como uma perda do objeto que o trabalhador é despojado das coisas mais essenciais não só da vida, mas também do trabalho. O próprio trabalho transforma-se em um objeto que ele só pode adquirir com tremendo esforço e com interrupções imprevisíveis. A apropriação do objeto aparece como alienação a tal ponto que quanto mais objetos o trabalhador produz tanto menos pode possuir e tanto mais fica dominado pelo seu produto, o capital.

Todas essas conseqüências decorrem do fato de o trabalhador ser relacionado com o produto de seu trabalho como com um objeto estranho. Pois está claro que, baseado nesta premissa, quanto mais o trabalhador se desgasta no trabalho tanto mais poderoso se torna o mundo de objetos por ele criado em face dele mesmo, tanto mais pobre se torna a sua vida interior, e tanto menos ele se pertence a si próprio. Quanto mais de si mesmo o homem atribui a Deus, tanto menos lhe resta. O trabalhador põe a sua vida no objeto, e sua vida, então, não mais lhe pertence, porém, ao objeto. Quanto maior for sua atividade, portanto, tanto menos ele possuirá. O que está incorporado ao produto de seu trabalho não mais é dele mesmo. Quanto maior for o produto de seu trabalho, por conseguinte, tanto mais ele minguará. A alienação do trabalhador em seu produto não significa apenas que o trabalho dele se converte em objeto, assumindo uma existência externa, mas ainda que existe independentemente, fora dele mesmo, e a ele estranho, e que com ele se defronta como uma força autônoma. A vida que ele deu ao objeto volta-se contra ele como uma força estranha e hostil.

(XXIII) Examinemos agora, mais de perto, o fenômeno da objetificação, a produção do trabalhador e a alienação e perda do objeto por ele produzido, nisso implícitas. O trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensorial. Este ultimo é o material em que se concretiza o trabalho, em que este atua, com o qual e por meio do qual ele produz coisas.

Todavia, assim como a natureza proporciona os meios de existência do trabalho, na acepção de este não poder viver sem objetos aos quais possa aplicar-se, igualmente proporciona os meios de existência em sentido mais restrito, ou sejam os meios de subsistência física para o próprio trabalhador. Assim, quanto mais o trabalhador apropria o mundo externo da natureza sensorial por seu trabalho, tanto mais se despoja de meios de existência, sob dois aspectos: primeiro, o mundo exterior sensorial se torna cada vez menos um objeto pertencente ao trabalho dele ou um meio de existência de seu trabalho; segundo, ele se torna cada vez menos um meio de existência na acepção direta, um meio para a subsistência física do trabalhador.

Sob os dois aspectos, portanto, o trabalhador se converte em escravo do objeto: primeiro, por receber um objeto de trabalho, isto é, receber trabalho, e em segundo lugar por receber meios de subsistência. Assim, o objeto o habilita a existir, primeiro como trabalhador e depois como sujeito físico.

O apogeu dessa escravização é ele só poder se manter como sujeito físico na medida em que é um trabalhador, e de ele só como sujeito físico poder ser um trabalhador.

(A alienação do trabalhador em seu objeto é expressa da maneira seguinte, nas leis da Economia Política: quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem para consumir; quanto mais valor ele cria, tanto menos valioso se torna; quanto mais aperfeiçoado o seu produto, tanto mais grosseiro e informe o trabalhador; quanto mais civilizado o produto, tão mais bárbaro o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, tão mais frágil o trabalhador; quanto mais inteligência revela o trabalho, tanto mais o trabalhador decai em inteligência e se torna um escravo da natureza.)

A economia Política oculta a alienação na natureza do trabalho por não examinar a relação direta entre o trabalhador (trabalho) e a produção. Por certo, o trabalho humano produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para o trabalhador. Ele produz palácios, porém choupanas é o que toca ao trabalhador. Ele produz beleza, porém para o trabalhador só fealdade. Ele substitui o trabalho humano por maquinas, mas atira alguns dos trabalhadores a um gênero bárbaro de trabalho e converte outros em máquinas. Ele produz inteligência, porém também estupidez e cretinice para os trabalhadores.

A relação direta do trabalho com seus produtos é a entre o trabalhador e os objetos de sua produção. A relação dos possuidores de propriedade com os objetos da produção e com a própria produção é meramente uma conseqüência da primeira relação e a confirma. Apreciaremos adiante este segundo aspecto. Portanto, quando perguntamos qual é a relação importante do trabalho, estamos interessados na relação do trabalhador com a produção.

Até aqui consideramos a alienação do trabalhador somente sob um aspecto, qual seja o de sua relação com os produtos de seu trabalho. Não obstante, a alienação aparece não só como resultado, mas também como processo de produção, dentro da própria atividade produtiva. Como poderia o trabalhador ficar numa relação alienada com o produto de sua atividade se não se alienasse a si mesmo no próprio ato da produção? O produto é, de fato, apenas a síntese da atividade, da produção. Conseqüentemente, se o produto do trabalho é alienação, a própria produção deve ser alienação ativa - a alienação da atividade e a atividade da alienação A alienação do objeto do trabalho simplesmente resume a alienação da própria atividade do trabalho.

O que constitui a alienação do trabalho? Primeiramente, ser o trabalho externo ao trabalhador, não fazer parte de sua natureza, e por conseguinte, ele não se realizar em seu trabalho mas negar a si mesmo, ter um sentimento de sofrimento em vez de bem-estar, não desenvolver livremente suas energias mentais e físicas mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido. O trabalhador, portanto, só se sente à vontade em seu tempo de folga, enquanto no trabalho se sente contrafeito. Seu trabalho não é voluntário, porém imposto, é trabalho forçado. Ele não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer outras necessidades. Seu caráter alienado é claramente atestado pelo fato, de logo que não haja compulsão física ou outra qualquer, ser evitado como uma praga. O trabalho exteriorizado, trabalho em que o homem se aliena a si mesmo, é um trabalho de sacrifício próprio, de mortificação. Por fim, o caráter exteriorizado do trabalho para o trabalhador é demonstrado por não ser o trabalho dele mesmo mas trabalho para outrem, por no trabalho ele não se pertencer a si mesmo mas sim a outra pessoa.

Tal como na religião, a atividade espontânea da fantasia, do cérebro e do coração humanos, reage independentemente como uma atividade alheia de deuses ou demônios sobre o indivíduo, assim também a atividade do trabalhador não é sua própria atividade espontânea. É atividade de outrem e uma perda de sua própria espontaneidade.

Chegamos a conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente livremente ativo em suas funções animais - comer, beber e procriar, ou no máximo também em sua residência e no seu próprio embelezamento - enquanto que em suas funções humanas se reduz a um animal. O animal se torna humano e o humano se torna animal.

Comer, beber e procriar são, evidentemente, também funções genuinamente humanas. Mas, consideradas abstratamente, à parte do ambiente de outras atividades humanas, e convertidas em fins definitivos e exclusivos, são funções animais.

Consideremos, agora, o ato de alienação da atividade humana prática, o trabalho, sob dois aspectos: 1) a relação do trabalhador com o produto do trabalho como um objeto estranho que o domina. Essa relação é, ao mesmo tempo, a relação com o mundo exterior sensorial, com os objetos naturais, como um mundo estranho e hostil; 2) a relação do trabalho como o ato de produção dentro do trabalho. Essa é a relação do trabalhador com sua própria atividade humana como algo estranho e não pertencente a ele mesmo, atividade como sofrimento (passividade), vigor como impotência, criação como emasculação, a energia física e mental pessoal do trabalhador, sua vida pessoal (pois o que é a vida senão atividade?) como uma atividade voltada contra ele mesmo, independente dele e não pertencente a ele. Isso é auto-alienação, ao contrário da acima mencionada alienação do objeto.

(XXIV) Temos, agora, de inferir uma terceira característica do trabalho alienado, partindo das duas já vistas.

O homem é um ente-espécie não apenas no sentido de que ele faz da comunidade (sua própria, assim como as de outras coisas) seu objeto, tanto prática quanto teoricamente, mas também (e isto é simplesmente outra expressão da mesma coisa) no sentido de tratar-se a si mesmo como a espécie vivente, atual, como um ser universal e conseqüentemente livre.

A vida da espécie, para o homem assim como para os animais, encontra sua base física no fato de o homem (como os animais) viver da natureza inorgânica, e como o homem é mais universal que um animal, assim também o âmbito da natureza inorgânica de que ele vive é mais universal. Vegetais, animais, minerais, ar, luz, etc., constituem, sob o ponto de vista teórico, uma parte da consciência humana como objetos da ciência natural e da arte; eles são a natureza inorgânica espiritual do homem, se meio intelectual de vida, que ele deve primeiramente preparar para seu prazer e perpetuação. Assim também, sob o ponto de vista prático, eles formam parte da vida e atividade humanas. Na prática, o homem vive apenas desses produtos naturais, sob a forma de alimento, aquecimento, roupa, abrigo, etc. A universalidade do homem aparece, na prática, na universalidade que faz da natureza inteira o seu corpo: 1) como meio direto de vida, e igualmente, 2) como o objeto material e o instrumento de sua atividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem; quer isso dizer a natureza excluindo o próprio corpo humano. Dizer que o homem vive da natureza significa que a natureza é o corpo dele, com o qual deve se manter em contínuo intercâmbio a fim de não morrer. A afirmação de que a vida física e mental do homem e a natureza são interdependentes, simplesmente significa ser a natureza interdependente consigo mesma, pois o homem é parte dela.

Tal como o trabalho alienado:

1) aliena a natureza do homem e

2) aliena o homem de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital, assim também o aliena da espécie. Ele transforma a vida da espécie em uma forma de vida individual. Em primeiro lugar, ele aliena a vida da espécie e a vida individual, e posteriormente transforma a segunda, como uma abstração, em finalidade da primeira, também em sua forma abstrata e alienada.

Pois, trabalho, atividade vital, vida produtiva, agora aparecem ao homem apenas como meios para a satisfação de uma necessidade, a de manter sua existência física. A vida produtiva, contudo, é vida da espécie. É vida criando vida. No tipo de atividade vital, reside todo o caráter de uma espécie, seu caráter como espécie; e a atividade livre, consciente, é o caráter como espécie dos seres humanos. A própria vida assemelha-se somente a um meio de vida.

O animal identifica-se com sua atividade vital. Ele não distingue a atividade de si mesmo. Ele é sua atividade.

O homem, porém, faz de sua atividade vital um objeto de sua vontade e consciência. Ele tem uma atividade vital consciente. Ela não é uma prescrição com a qual ele esteja plenamente identificado. A atividade vital consciente distingue o homem da atividade vital dos animais: só por esta razão ele é um ente-espécie. Ou antes, é apenas um ser auto-consciente, isto é, sua própria vida é um objeto para ele, porque ele é um ente-espécie. Só por isso, a sua atividade é atividade livre. O trabalho alienado inverte a relação, pois o homem, sendo um ser autoconsciente, faz de sua atividade vital, de seu ser, unicamente um meio para sua existência.

A construção prática de um mundo objetivo, a manipulação da natureza inorgânica, é a confirmação do homem como um ente-espécie, consciente, isto é, um ser que trata a espécie como seu próprio ser ou a si mesmo como um ser-espécie. Sem dúvida, os animais também produzem. Eles constróem ninhos e habitações, como no caso das abelhas, castores, formigas, etc. Porém, só produzem o estritamente indispensável a si mesmos ou aos filhotes. Só produzem em uma única direção, enquanto o homem. produz universalmente. Só produzem sob a compulsão de necessidade física direta, ao passo que o homem produz quando livre de necessidade física e só produz, na verdade, quando livre dessa necessidade. Os animais só produzem a si mesmos, enquanto o homem reproduz toda a natureza. Os frutos da produção animal pertencem diretamente a seus corpos físicos, ao passo que o homem é livre ante seu produto. Os animais só constróem de acordo com os padrões e necessidades da espécie a que pertencem, enquanto o homem sabe produzir de acordo com os padrões de todas as espécies e como aplicar o padrão adequado ao objeto. Assim, o homem constrói também em conformidade com as leis do belo.

É justamente em seu trabalho exercido no mundo objetivo que o homem realmente se comprova como um ente-espécie. Essa produção é sua vida ativa como espécie; graças a ela, a natureza aparece como trabalho e realidade dele. O objetivo do trabalho, portanto, é a objetificação da vida como espécie do homem, pois ele não mais se reproduz a si mesmo apenas intelectualmente, como na consciência, mas ativamente e em sentido real, e vê seu próprio reflexo em um mundo por ele construído. Por conseguinte, enquanto o trabalho alienado afasta o objetivo da produção do homem, também afasta sua vida como espécie, sua objetividade real como ente-espécie, e muda a superioridade sobre os animais em uma inferioridade, na medida em que seu corpo inorgânico, a natureza, é afastado dele.

Assim como o trabalho alienado transforma a atividade livre e dirigida pelo próprio indivíduo em um meio, também transforma a vida do homem como membro da espécie em um meio de existência física.

A consciência que o homem tem de sua espécie é transformada por meio da alienação, de sorte que a vida como espécie torna-se apenas um meio para ele.

(3) Então, o trabalho alienado converte a vida do homem como membro da espécie, e também como propriedade mental da espécie dele, em uma entidade estranha e em um meio para sua existência individual. Ele aliena o homem de seu próprio corpo, a natureza extrínseca, de sua vida mental e de sua vida humana.

(4) Uma conseqüência direta da alienação do homem com relação ao produto de seu trabalho, à sua atividade vital e a sua vida como membro da espécie, é o homem ficar alienado dos outros homens. Quando o homem se defronta consigo mesmo, também está se defrontando com outros homens.

O que é verdadeiro quanto à relação do homem com seu trabalho, com o produto desse trabalho e consigo mesmo, também o é quanto à sua relação com outros homens, com o trabalho deles e com os objetos desse trabalho.

De maneira geral, a declaração de que o homem fica alienado da sua vida como membro da espécie implica em cada homem ser alienado dos outros, e cada um dos outros ser igualmente alienado da vida humana.

A alienação humana, e acima de tudo a relação do homem consigo próprio, é pela primeira vez concretizada e manifestada na relação entre cada homem e os demais homens. Assim, na relação do trabalho alienado cada homem encara os demais de acordo com os padrões e relações em que ele se encontra situado como trabalhador.

(XXV) Principiamos por uma fato econômico, a alienação do trabalhador e de sua produção. Exprimimos esse fato em termos conceituais como trabalho alienado e, ao analisar o conceito, limitamo-nos a analisar um fato econômico.

Examinemos, agora, mais além, como esse conceito de trabalho alienado deve expressar-se e revelar-se na realidade. Se o produto do trabalho me é estranho e enfrenta-me como uma força estranha, a quem pertence ele? Se minha própria atividade não me pertence, mas é uma atividade alienada, forçada, a quem ela pertence? A um ser, outro que não eu. E que é esse ser? Os deuses? É evidente, nas mais primitivas etapas de produção adiantada, por exemplo, construção de templos, etc., no Egito, Índia, México, é nos serviços prestados aos deuses, que o produto pertencia a estes. Mas os deuses nunca eram por si sós os donos do trabalho humano; tampouco o era a natureza. Que contradição haveria se quanto mais o homem subjugasse a natureza com seu trabalho, e quanto mais as maravilhas dos deuses fossem tornadas supérfluas pelas da industria, ele se abstivesse da sua alegria em produzir e de sua fruição dos produtos por amor a esses poderes!

O ser estranho a quem pertencem o trabalho e o produto deste, a quem o trabalho é devotado, e para cuja fruição se destina o produto do trabalho, só pode ser o próprio homem. Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, mas o enfrenta como uma força estranha, isso só pode acontecer porque pertence a um outro homem que não o trabalhador. Se sua atividade é para ele um tormento, ela deve ser uma fonte de satisfação e prazer para outro. Não os deuses nem a natureza, mas só o próprio homem pode ser essa força estranha acima dos homens.

Considere-se a afirmação anterior segundo a qual a relação do homem consigo mesmo se concretiza e objetiva primariamente através de sua relação com outros homens. Se, portanto, ele está relacionado com o produto de seu trabalho, seu trabalho objetificado, como com um objeto estranho, hostil, poderoso e independente, ele está relacionado de tal maneira que um outro homem, estranho, hostil, poderoso e independente, é o dono de seu objeto. Se ele está relacionado com sua atividade como com uma atividade não-livre, então está relacionado com ela como uma atividade a serviço e sob jugo, coerção e domínio de outro homem.

Toda auto-alienação do homem, de si mesmo e da natureza, aparece na relação que ele postula entre os outros homens, ele próprio e a natureza. Assim a auto-alienação religiosa é necessariamente exemplificada na relação entre leigos e sacerdotes, ou, já que aqui se trata de uma questão do mundo espiritual, entre leigos e um mediador. No mundo real da prática, essa auto-alienação só pode ser expressa na relação real, prática, do homem com seus semelhantes.

O meio através do qual a alienação ocorre é, por si mesmo, um meio prático. Graças ao trabalho alienado, por conseguinte, o homem não só produz sua relação com o objeto e o processo da produção como com homens estranhos e hostis, mas também produz a relação de outros homens com a produção e o produto dele, e a relação entre ele próprio e os demais homens. Tal como ele cria sua própria produção como uma perversão, uma punição, e seu próprio produto como uma perda, como um produto que não lhe pertence, assim também cria a dominação do não-produtor sobre a produção e os produtos desta. Ao alienar sua própria atividade, ele outorga ao estranho uma atividade que não é deste.

Apreciamos até aqui essa relação somente do lado do trabalhador, e posteriormente a apreciaremos também do lado do não-trabalhador.

Assim, graças ao trabalho alienado o trabalhador cria a relação de outro homem que não trabalha e está de fora do processo do trabalho, com o seu próprio trabalho. A relação do trabalhador com o trabalho também provoca a relação do capitalista (ou como quer que se denomine ao dono da mão-de-obra) com o trabalho. A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado inevitável, do trabalho alienado, da relação externa do trabalhador com a natureza e consigo mesmo.

A propriedade privada, pois, deriva-se da análise do conceito de trabalho alienado: isto é, homem alienado, trabalho alienado, vida alienada, e homem afastado.

Está claro que extraímos o conceito de trabalho alienado (vida alienada) da Economia Política, partindo de uma análise do movimento da propriedade privada. A análise deste conceito, porém, mostra que embora a propriedade privada pareça ser a base e causa do trabalho alienado, é antes uma conseqüência dele, tal e qual os deuses não são fundamentalmente a causa, mas o produto de confusões da razão humana. Numa etapa posterior, entretanto, há uma influência recíproca.

Só na etapa final da evolução da propriedade privada é revelado o seu segredo, ou seja, que é, de um lado, o produto do trabalho alienado, e do outro, o meio pelo qual o trabalho é alienado, a realização dessa alienação.

Esta elucidação lança luz sobre diversas controvérsias não solucionadas:

(1) A Economia Política inicia tomando o trabalho como a verdadeira alma da produção e, a seguir, nada lhe atribui, concedendo tudo à propriedade privada. Proudhon, defrontando-se com essa contradição, decidiu em favor do trabalho contra a propriedade privada. Percebemos, contudo, que essa aparente contradição é a contradição do trabalho alienado consigo mesmo e que a Economia Política meramente formulou as leis do trabalho alienado.

Observamos, também, por conseguinte, que salários e propriedade privada são idênticos, porquanto os salários como o produto ou objetivo do trabalho, o próprio trabalho remunerado, são apenas conseqüência necessária da alienação do trabalho. No sistema de salários, o trabalho aparece não como um fim por si mas como o servo dos salários. Mais tarde nos entenderemos sobre isto, limitando-nos, aqui, a desvendar algumas das conseqüências (XXVI).

Um aumento de salários imposto (desprezando outras dificuldades, e especialmente a de que uma anomalia dessas só poderia ser mantida pela força) não passaria de uma remuneração melhor de escravos, e não restauraria, seja para o trabalhador seja para o trabalho, seu significado e valor humanos.

Mesmo a igualdade das rendas que Proudhon exige só modificaria a relação do trabalhador de hoje em dia com seu trabalho em uma relação de todos os homens com o trabalho. A sociedade seria concebida, então, como um capitalista abstrato.

(2) Da relação do trabalho alienado com a propriedade privada também decorre que a emancipação da sociedade da propriedade privada, da servidão, assume a forma política de emancipação dos trabalhadores; não no sentido de só estar em jogo a emancipação destes, mas por essa emancipação abranger a de toda a humanidade. Pois toda servidão humana está enredada na relação do trabalhador com a produção, e todos os tipos de servidão são somente modificações ou corolários desta relação.

Como descobrimos o conceito de propriedade privada por uma análise do conceito de trabalho alienado, com o auxílio desses dois fatores também podemos deduzir todas as categorias da Economia Política, e em cada uma, isto é, comércio, competição, capital, dinheiro, descobriremos só uma expressão particular e ampliada desses elementos fundamentais.

Sem embargo, antes de considerar essa estrutura, tentemos solucionar dois problemas.

(1) Determinar a natureza geral da propriedade privada como resultou do trabalho alienado, em sua relação com a propriedade humana e social genuína.

(2) Tomamos como fato e analisamos a alienação do trabalho. Como sucede, podemos indagar, que o homem aliene seu trabalho? Como essa alienação se alicerça na natureza da evolução humana? Já fizemos muito para resolver o problema, visto termos transformado a questão referente ã origem da propriedade privada em uma questão acerca da relação entre trabalho alienado e o processo de evolução da humanidade. Pois, ao falar de propriedade privada, acredita-se estar lidando com algo extrínseco à espécie humana. Mas, ao falar de trabalho, lida-se diretamente com a própria espécie humana. Esta nova formulação do problema já encerra sua solução.

ad (1) A natureza geral da propriedade privada e sua relação com a propriedade genuína.

Decompusemos o trabalho alienado em duas partes, que se determinam mutuamente, ou melhor, constituem duas expressões distintas de uma única relação. A apropriação aparece como alienação e alienação como apropriação; alienação como aceitação genuína na comunidade.

Consideramos um aspecto, o trabalho alienado, em seus reflexos no próprio trabalhador, isto é, a relação alienada do trabalho humano consigo mesmo. E constatamos ser corolário obrigatório dessa relação, a relação de propriedade do não-trabalhador com o trabalhador e com o trabalho. A propriedade privada, como expressão material sinóptica do trabalho alienado, inclui ambas as relações: a relação do trabalhador com o trabalho, com o produto de seu trabalho e com o não-trabalhador, e a relação do não-trabalhador com o trabalhador e com o produto do trabalho deste.

Já vimos que em relação ao trabalhador, que apropria a natureza por intermédio de seu trabalho, a apropriação se afigura uma alienação, a atividade própria como atividade para outrem e de outrem, a vida como sacrifício da vida, e a produção do objeto como perda deste para uma força estranha, um homem estranho. Consideremos, agora, a relação deste homem estranho com o trabalhador, com o trabalho e com o objeto do trabalho.

Deve ser observado, de início, que tudo que aparece ao trabalhador como uma atividade de alienação, aparece ao não-trabalhador como uma condição de alienação. Em segundo lugar, a atitude prática real do trabalhador na produção e face ao produto (como estado de espírito) afigura-se ao não-trabalhador, que com ele se defronta, como uma atitude teórica.

(XXVII) Em terceiro lugar, o não-trabalhador faz contra o trabalhador tudo que este faz contra si mesmo, mas não faz contra si próprio o que faz contra o trabalhador.

Examinemos mais de perto essas três relações.

[o manuscrito interrompe-se aqui]



Terceiro Manuscrito


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Crítica da Filosofia Dialética e Geral de Hegel
(6) Este talvez seja um ponto apropriado a explicar e substanciar o que foi dito, e a tecer certos comentários gerais a respeito da dialética de Hegel, especialmente como se acha exposta na Fenomenologia e na Lógica, e a respeito de sua relação com o moderno movimento crítico.

A crítica alemã moderna tem estado tão preocupada com o passado, e tão tolhida por seu enredamento com o tema, que tinha uma atitude totalmente pouco crítica face aos métodos de crítica e ignorava completamente a pergunta, em parte formal, mas de fato essencial qual nossa posição relativamente à dialética hegeliana? Essa ignorância da relação da crítica moderna com a filosofia geral de Hegel, e em particular com a dialética, era tão grande que críticos como Strauss e Bruno Bauer (o primeiro em todos os seus trabalhos; o último em seu Synoptiker, onde em oposição a Strauss, ele substitui a "autoconsciência" do homem abstrato pela substância da - "natureza abstrata", e mesmo em Das entdeckte Christentum) viram-se, pelo menos implicitamente, presos na armadilha da lógica hegeliana. Assim, por exemplo, em Das entdeckte Christentum, argumenta-se: "Como se a autoconsciência ao postular o mundo, o que é diferente, não se produzisse a si mesma ao produzir seu objeto; pois então ela anula a diferença entre si mesma e o que produziu, já que só tem existência nessa criação e movimento, só tem sua finalidade nesse movimento, etc." Ou então: "Eles (os materialistas franceses) não podiam ver que o movimento do universo só se tornou real e unificado em si mesmo na medida em que é o movimento da autoconsciência." Essas expressões não só não diferem do conceito hegeliano, como o reproduzem textualmente.

(XII) Quão pouco esses autores, ao empreenderem sua crítica (Bauer em seu Synoptiker) se davam conta de sua relação com a dialética de Hegel, e quão pouco essa percepção brotou de sua crítica, é demonstrado por Bauer em seu Gute Sache der Freiheit quando, em vez de responder à pergunta indiscreta feita por Gruppe, "E agora, o que fazer com a lógica?", ele a transfere a futuros críticos.

Agora que Feuerbach, em sua "Thesen" em Anecdotis, e com maior minúcia em sua Philosophie der Zukunft, demoliu o princípio interior da dialética e da filosofia antigas, a "Escola Crítica", que foi incapaz de fazer isso por si mesma mas viu-o realizado, proclamou-se a crítica pura, decisiva, absoluta e finalmente esclarecida, e em sua soberba espiritual reduziu todo o movimento histórico à relação existente entre ela mesma e o resto do mundo, enquadrado na categoria de a massa". Ela reduziu todas as antíteses dogmáticas a única antítese dogmática entre sua própria sagacidade e a estupidez do mundo, entre o Cristo crítico e a humanidade - a ralé. Em todos os instantes do dia, demonstrou sua própria excelência vis-à-vis a estultícia da massa, e anunciou, finalmente, o juízo final crítico, proclamando estar iminente o dia em que toda a humanidade decaída se reunirá diante dela e será dividida em grupos, a cada um dos quais será entregue o respectivo testimoniu paupertatis (certificado de pobreza). A Escola Critica tornou pública sua superioridade sobre todos os sentimentos humanos e o mundo, acima do qual ela está sentada num trono em sublime solidão, contente de ocasional mente deixar escapar dos lábios o riso dos deuses do Olimpo. Após todas essas momices divertidas do idealismo (do Jovem Hegelianismo) que está expirando sob a forma de crítica, a Escola Crítica ainda nem insinuou até agora ser necessário examinar criticamente sua própria fonte, a dialética de Hegel, nem deu qualquer indicação de sua relação com a dialética de Feuerbach. Esse é um procedimento completamente desprovido de senso crítico.

Feuerbaché a única pessoa que tem uma relação séria e critica com a dialética de Hegel, efetuou descobrimentos verdadeiros nesse campo e, acima de tudo, levou de vencida a velha filosofia. A grandeza do feito de Feuerbach e a modesta simplicidade com que apresenta sua obra ao mundo, contrastam incrivelmente com a conduta de outros:

A grande realização de Feuerbach é:

(1) ter mostrado a filosofia nada mais ser do que a religião trazida para o pensamento e desenvolvida por este, de vendo ser igualmente condenada como outra forma e modo de existência da alienação humana;

(2) ter lançado os fundamentos do materialismo genuíno e da ciência positiva, ao fazer da relação social de "homem com homem" o principio básico de sua teoria;

(3) ter-se oposto à negação da negação que alega ser o positivo absoluto um princípio auto-suficiente, positivamente baseado em si mesmo.

Feuerbach explica a dialética de Hegel e, ao mesmo tempo, justifica a adoção do fenômeno positivo, aquele que é perceptível e indubitável, como ponto de partida, da seguinte maneira: Hegel principia pela alienação da substância (logicamente, pelo infinito, pelo universal abstrato), pela abstração absoluta e fixa; i. é, em linguagem comum, pela religião e pela teologia. Em segundo lugar, cancela o infinito e postula o real, o perceptível, o finito e o particular. (Filosofia, cancelamento da religião e da teologia.) Em terceiro lugar, a seguir revoga o positivo e restabelece a abstração, o infinito. (Restabelecimento da religião e da teologia.)

Destarte, Feuerbach concebe a negação da negação como sendo apenas uma contradição dentro da própria filosofia, que afirma a teologia (transcendência, etc.) após tê-la anulado, e assim a afirma em oposição à filosofia.

Pois o postulado ou auto-afirmação e autoconfirmação implícito na negação da negação é encarado como um postulado ainda incerto, oprimido pelo seu contrário, duvidando de si mesmo e por isso incompleto, não demonstrado por sua própria existência, e implícito. (XIII) O postulado perceptualmente indubitável e alicerçado em si mesmo, opõe-se-lhe diretamente.

Ao conceber a negação da negação, sob o aspecto da relação positiva a ela inerente, como a única verdadeiramente positiva, e sob o aspecto da relação negativa a ela inerente, como o único ato verdadeiro, e que se confirma a si próprio, de todo o ser, Hegel descobriu simplesmente uma expressão abstrata, lógica e especulativa do processo histórico, que ainda não é a verdadeira história do homem como um dado sujeito, mas apenas a história do ato de criação, da gênese do homem.

Explicaremos tanto a forma abstrata desse processo quanto a diferença entre o processo como foi ideado por Hegel e pela crítica moderna, e por Feuerbach em Das Wesen des Christentums; ou melhor, a forma crítica desse processo, ainda tão pouco crítico em Hegel.

Examinemos o sistema de Hegel. É necessário começar pela Fenomenologia, porque aí nasceu a filosofia de Hegel e aí seu segredo tem de ser descoberto.

Fenomenologia

A. Autoconsciência

1. Consciência.

(a) Certeza da experiência sensorial, ou o "isto" e o significado.

(b) Percepção, ou a coisa com suas propriedades, e ilusão.

(c) Poder e compreensão, fenômenos e o mundo supra-sensível.

II. Autoconsciência. A verdade da certeza de si mesmo.

(a) Independência e dependência da autoconsciência, dominação e servidão.

(b) Liberdade da autoconsciência. Estoicismo, ceticismo, a consciência infeliz.

III. Razão. Certeza e verdade da razão.

(a) Razão perceptível: observação da natureza e da autoconsciência.

(b) Auto-realização da autoconsciência racional. Prazer e necessidade. A lei do coração e o frenesi da vaidade. A virtude e a trajetória do mundo.

(c) A individualidade que é real em si e para si mesma. O reino animal espiritual e a burla, ou a própria coisa. Razão legislativa. Razão que põe à prova as leis.

B. Espirito

I- Espírito verdadeiro; moral consuetudinária.

II- Espírito auto-alienado; cultura.

III- O espírito certo de si mesmo; moral.

C. Religião

Religião natural, a religião da arte, religião revelada.

D. Conhecimento absoluto.

A Encyclopaedia de Hegel começa com a lógica, com o pensamento especulativo puro, e termina com o conhecimento absoluto, a inteligência filosófica ou absoluta, autoconsciente e capaz de conceber a si mesma, i. é, a inteligência sobre-humana, abstrata. O conjunto da Encyclopaedia nada mais é que o ser prolongado da inteligência filosófica, sua auto-objetificação; e a inteligência filosófica nada mais é do que a inteligência alienada do mundo pensando dentro dos limites de sua auto-alienação, i. é., concebendo-se a si mesma de forma abstrata. A lógica é o dinheiro da mente, o valor-pensamento especulativo do homem e da natureza cuja essência é indiferente a qualquer caráter real determinado e, portanto, irreal; o pensamento que é alienado e abstrato e ignora o homem e a natureza reais. O caráter externo desse pensamento abstrato. . . a natureza como existe para esse pensamento abstrato. A natureza é externa a ele, uma privação dele mesmo, e só concebida como algo externo, como pensamento abstrato, mas pensamento abstrato alienado. Finalmente, o espírito, esse pensamento retornando à própria origem e que, como espírito antropológico, fenomenológico, psicológico, consuetudinário, artístico-religioso, não é válido para si mesmo até se descobrir e relacionar-se com conhecimento absoluto no espírito absoluto (i. é, abstrato), quando recebe sua existência consciente e adequada. Pois seu verdadeiro modo de existência é a abstração.

Hegel comete um duplo erro. O primeiro aparece mais claramente na Fenomenologia o berço de sua filosofia. Quando Hegel concebe a riqueza, o poder do Estado, etc., como entidades alienadas do ser humano, ele as concebe somente em sua forma de noções. Elas são entes de razão e, assim, simplesmente uma alienação do pensamento puro (i. é, filosófico abstrato). O movimento inteiro, por conseguinte, acaba no conhecimento absoluto. É exatamente o pensamento abstrato de que esses objetos se acham alienados e enfrentam com sua presunçosa realidade. O filósofo, ele próprio uma forma abstrata de homem alienado, instala-se a si mesmo como a medida do mundo alienado. Toda a história da alienação, e do retraimento da alienação, portanto, é apenas a história da produção de pensamento abstrato, i. é, de pensamento absoluto, lógico, especulativo. O alheamento, que assim forma o verdadeiro interesse dessa alienação e da revogação dessa alienação, é a oposição de em si e para si, de consciência e autoconsciência, de objeto e sujeito, i. é, a oposição, no próprio pensamento, entre pensamento abstrato e realidade sensível ou existência sensorial real. Todas as outras contradições e movimentos são a mera aparência, a máscara, a forma exotérica desses dois opostos, os únicos importantes e que constituem a significância do outro, contradições profanas. Não é o fato de o ser humano objetificar-se desumanamente, em oposição a si mesmo, mas o de ele objetificar-se distinguindo-se e opondo-se ao pensamento abstrato, que constitui alienação como existe e como tem de ser transcendida.

(XVIII) A apropriação das faculdades objetificadas e alienadas do homem é, pois, em primeiro lugar, apenas uma apropriação efetuada na consciência, no pensamento puro, i. é, em abstração. E a apropriação desses objetos como pensamentos e como movimentos do pensamento. Por essa razão, a despeito de sua aparência perfeitamente negativa e crítica, e a despeito da critica genuína nela encerrada freqüentemente antecipar progressos ulteriores, já estão implícitos na Fenomenologia, como germe, potencialidade e segredo, o positivismo e idealismo não-críticos de obras posteriores de Hegel - a dissolução filosófica e restauração do mundo empírico existente. Em segundo lugar, a defesa do mundo objetivo para o homem (por exemplo, o reconhecimento da percepção dos sentidos não ser percepção sensorial abstrata, mas percepção sensorial humana, de a religião, a riqueza, etc., serem apenas a realidade alienada da objetificação humana, de faculdades humanas postas em ação e, portanto, um caminho para a realidade humana genuína), essa apropriação, ou o discernimento desse processo, aparece em Hegel como o reconhecimento do sensacionalismo, religião, poder estatal, etc., como fenômenos mentais, pois só a mente é a verdadeira essência do homem, e a verdadeira forma da mente é a mente pensante, a mente lógica e especulativa. O caráter humano da natureza, da natureza produzida historicamente, dos produtos do homem, é demonstrado por eles serem produtos da mente abstrata e, pois, fases da mente, entes de razão. A Fenomenologia é uma crítica velada, obscura e mistificadora, mas, na medida em que concebe a alienação do homem (conquanto o homem apareça exclusivamente como mente) todos os elementos da crítica acham-se nela contidos, e são amiúde apresentados e trabalhados de forma que ultrapassa de longe o ponto de vista do próprio Hegel. As seções dedicadas à consciência infeliz", à "consciência honesta", à porfia entre a consciência "nobre" e a "vil", etc., etc., encerram os elementos críticos (se bem que ainda sob forma alienada) de áreas inteiras, como a religião, o Estado, a vida civil, etc. Assim como a entidade, o objeto, aparece como um ente de razão, também o sujeito é sempre a consciência ou autoconsciência; ou melhor, o objeto aparece apenas como consciência abstrata e o homem como autoconsciência. Assim, as formas distintivas da alienação manifestadas são meras formas diferentes de consciência e autoconsciência. Com a consciência abstrata (a forma em que o objeto é concebido) é em si mesma unicamente um momento distintivo da autoconsciência, o resultado do movimento é a identidade de autoconsciência e consciência - conhecimento absoluto - o movimento do pensamento abstrato não se voltando para fora, mas para dentro de si mesmo; i. é, daí resulta a dialética do pensamento puro.

(XXIII) A proeza extraordinária da Fenomenologia de Hegel - a dialética do negativismo como principio motor e criador - é, primeiramente, Hegel perceber a autocriação do homem como um processo, a objetificação como perda do objeto, como alienação e transcendência dessa alienação, e, por isso, perceber a natureza do trabalho, e conceber o homem objetivo (verdadeiro, porque real) como o resultado de seu próprio trabalho. A orientação real, ativa, do homem para si mesmo como ente-espécie, ou a afirmação de si mesmo como verdadeiro ente-espécie (i. é, como ser humano) só é possível na medida em que ele de fato põe em ação todas as potencialidades da espécie (o que somente é possivel graças à cooperação da humanidade e como produto da História) e trata esses poderes como objetos, o que de inicio só pode ser feito sob a forma de alienação.

Mostraremos, a seguir, pormenorizadamente, o unilateralismo e as limitações de Hegel, como são revelados no capitulo final de sua Fenomenologia sobre o conhecimento absoluto, capítulo esse que contém o espírito concentrado de todo o livro, sua relação com a dialética, e também a consciência do próprio Hegel quanto a ambas e à sua inter-relação.

No momento, façamos estas observações preliminares: o ponto de vista de Hegel é o da moderna Economia Política. Ele concebe o trabalho como a essência, a essência autoconfirmadora do homem; observa somente o aspecto positivo do trabalho, não o seu aspecto negativo. O trabalho é a marcha do homem para se tornar ele próprio dentro da alienação, ou como homem alienado. Assim, o que acima de tudo constitui a essência da filosofia, a alienação do homem conhecendo-se a si mesmo, ou a ciência alienada concebendo-se a si mesma, Hegel percebe como essência dela. Consequentemente, ele fica em condições de reunir os elementos separados da filosofia anterior e apresentar a sua própria como sendo a Filosofia. O que outros filósofos fizeram, isto é, conceber elementos isolados da natureza e da vida humana, como fases da autoconsciência e, deveras, da autoconsciência abstrata, Hegel sabe por fazer filosofia; por conseguinte, sua ciência é absoluta.

Passemos agora ao nosso tema:

Conhecimento absoluto

O capítulo final da Fenomenologia

O ponto capital é o objeto da consciência nada mais ser do que autoconsciência, o objeto ser apenas autoconsciência objetificada, autoconsciência como um objeto. (Homem que postula = autoconsciência.)

É necessário, pois, vencer o objeto da consciência. A objetividade como tal é considerada apenas uma relação humana alienada não correspondente à essência do homem, a autoconsciência. A reapropriação da essência objetiva do homem, produzida como algo alheio ao homem e determinado pela alienação, significa a revogação não só da alienação mas também da objetividade; isto é, o homem é visto como um ser não-objetivo, espiritual.

A processo de superação do objeto da consciência é descrito por Hegel da seguinte maneira: o objeto não se revela apenas como retornando ao Eu (segundo Hegel, essa é uma concepção unilateral do movimento, considerando somente um aspecto). O homem e igualado ao eu. O Eu, no entanto, é apenas o homem concebido abstratamente e produzido por abstração. O homem é auto-referível. Seu olho, seu ouvido, etc., são auto-referíveis; todas as suas faculdades possuem essa qualidade de auto-referência. É inteiramente falso, todavia, dizer, por isso, "A autoconsciência tem olhos, ouvidos, faculdades." A autoconsciência é antes uma qualidade da natureza humana, do olho humano, etc.; a natureza humana não e uma qualidade da (XXIV) autoconsciência.

O Eu, abstraído e determinado por si mesmo, é o homem como um egoísta abstrato, egoísmo puramente abstrato elevado ao plano do pensamento. (Voltaremos a esse ponto mais adiante.)

Para Hegel, a vida humana, o homem, é equivalente a autoconsciência. Toda a alienação da vida humana é, assim, nada mais que alienação da autoconsciência. A alienação da autoconsciência não é vista como a expressão, refletida no conhecimento e no pensamento, da verdadeira alienação da vida humana. Ao invés, a alienação efetiva, que parece real, em sua mais íntima natureza oculta (que é pela primeira vez desvendada pela filosofia) é apenas a existência fenomenal da alienação da vida humana real, da autoconsciência. A ciência que abrange isso é, por conseguinte, denominada Fenomenologia. Toda reapropriação da vida objetiva alienada aparece, assim, como uma incorporação à autoconsciência. A pessoa que se apodera do ser humano é apenas a autoconsciência que se apodera do ser objetivo; a volta do objeto para dentro do Eu, portanto, é a reapropriação do objeto.

Expressa de maneira mais lata, a revogação do objeto da consciência significa: (1) que o objeto como tal se apresenta à consciência como algo que desaparece; (2) que é a alienação da autoconsciência que estabelece o característico de "coisa"; (3) que essa alienação tem significado positivo assim como negativo; (4) que ela tem esse significado não apenas para nós ou em si, mas também para a própria autoconsciência; (5) que para a autoconsciência a negação do objeto, sua revogação, tem significado positivo, ou a autoconsciência conhece a nulidade do objeto porquanto ela se aliena a si mesma, pois nessa alienação ela se estabelece como objeto ou, em prol da união indivisível de existir por si mesma, estabelece o objeto como ela própria; (6) que, por outro lado, esse outro "momento" está igualmente presente, a auto consciência revogou e reabsorveu essa alienação objetivamente, e está, assim, em casa em seu outro ser como tal; (7) que esse e o movimento da consciência, e esta é, então, a totalidade de seus "momentos"; (8) que, analogamente, a consciência deve ter-se relacionado com o objeto em todas as suas determinações, e tê-lo concebido em função de cada uma delas. Essa totalidade de determinações faz o objeto intrinsecamente, um ser espiritual, e ele se torna assim, deveras, para a consciência, pela apreensão de cada uma dessas determinações como o Eu, ou pelo que foi anteriormente chamado de atitude espiritual para com elas.

ad (1) Que o objeto como tal se apresenta à consciência como algo que desaparece, é a acima mencionada volta do objeto para o Eu.

ad (2) A alienação da autoconsciência estabelece o característico de "coisa". Porque o homem se iguala à autoconsciência, seu ser objetivo alienado ou "coisa" e equivalente à autoconsciência alienada, e essa alienação estabelece a situação de "coisa". ("Coisa" é o que é um objeto para ele, e um objeto para ele só é realmente aquilo que é um objeto essencial, consequentemente essência objetiva dele mesmo. E como ela não é o homem verdadeiro, nem sua natureza - o homem sendo natureza humana - que se torna como tal um sujeito, mas apenas uma abstração do homem, a autoconsciência, a "coisa" só pode ser autoconsciência alienada.) É bem compreensível um ser natural, vivo, dotado de faculdades objetivas (i. é, materiais) ter objetos naturais reais de seu ser, e igualmente sua auto-alienação ser o estabelecimento de um mundo objetivo, real, mas sob a forma de exterioridade, como um mundo que não pertence a, e domina, o seu ser. Nada há de ininteligível ou de misterioso acerca disso. O inverso, sim, seria misterioso. Mas, é igualmente claro que uma autoconsciência, i. é, sua alienação, só pode estabelecer a situação de "coisa", i. é, somente uma coisa abstrata, uma coisa criada pela abstração e não uma coisa real. É claro (XXVI), ademais, que a situação de "coisa" carece totalmente de independência, em ser, vis-à-vis, a autoconsciência; e um mero construto estabelecido pela autoconsciência. E o que é estabelecido não é confirmável por si mesmo; é a confirmação do ato de estabelecimento que, por um instante, e só por um instante, fixa sua energia como produto e, aparentemente, confere-lhe o papel de ser independente e real.

Quando o homem real, corpóreo, com os pés firmemente plantados no chão, aspirando e expirando todas as forças da natureza, postula suas faculdades objetivas reais, como resultado de sua alienação, como objetos alienados, o postulador não é o sujeito desse ato mas a subjetividade da faculdade objetiva cuja ação, pois, também deve ser objetiva. Um ser objetivo age objetivamente, e não agiria objetivamente se a objetividade não fizesse parte de seu ser essencial. Ele cria e estabelece apenas objetos porque é estabelecido por objetos e porque é fundamentalmente natural. No ato de estabelecer, não desce de sua "atividade pura" para a criação de objetos; seu produto objetivo simplesmente confirma sua atividade objetiva, sua atividade como ser natural, objetivo.

Vemos aqui como o naturalismo ou humanismo coerente se distingue tanto do idealismo como do materialismo e, ao mesmo tempo, constitui a sua verdade unificadora. Vemos, também, como só o naturalismo está em condições de compreender o processo da história mundial.

O homem é diretamente um ser natural. Como tal, e como ser natural vivo, ele é, de um lado, dotado de poderes e forças naturais, nele existentes como tendências e habilidades, como impulsos. Por outro lado, como ser natural, dota dotado de corpo, sensível e objetivo, ele é um ser sofredor, condicionado e limitado, como os animais e vegetais. Os objetos de seus impulsos existem fora dele como objetos dele independentes; sem embargo, são objetos das necessidades dele, objetos essenciais indispensáveis ao exercício e a confirmação de suas faculdades. O fato de o homem ser dotado de corpo, vivo, real, sensível e objetivo, com poderes naturais, significa ter objetos reais e sensíveis como objetos de seu ser, ou só poder expressar seu ser em objetos reais e sensíveis. Ser objetivo, natural, sensível e, ao mesmo tempo, ter objeto, natureza e sentidos fora de si mesmo, ou ser ele mesmo objeto, natureza e sentidos para um terceiro, é a mesma coisa. A fome é uma necessidade natural; ela exige, portanto, uma natureza a ela extrínseca, um objeto a ela extrínseco, a fim de ser satisfeita e aplacada. A fome e a necessidade objetiva que um corpo tem de um objeto existente fora dele e essencial para sua integração e a expressão de sua natureza. O sol é um objeto, um objeto necessário e assegurador de vida para a planta, tal como a planta é um objeto para o sol, uma expressão do poder vivificador e dos poderes essenciais objetivos do sol.

Um ser que não tenha sua natureza fora de si mesmo não é um ser natural e não compartilha da existência da natureza. Um ser sem objeto fora de si mesmo não é um ser objetivo. Um ser que não seja, ele próprio, o objeto para um terceiro ser, não possui ser para seu objeto, i. é, não é relacionado objetivamente e seu ser não é objetivo.

(XXVII) Um ser não-objetivo é um não-ser. Suponhamos um ser que não seja objeto por si mesmo nem tenha objeto. Em primeiro lugar, um ser assim seria o único ser; nenhum outro existiria fora dêle, e êle estaria sôzinho e solitário. Pois, desde que existam objetos fora de mim, logo que eu não esteja só, sou um outro, uma outra realidade com relação ao objeto exterior a mim. Para êsse terceiro objeto, portanto, sou uma outra realidade, que não é, i. é, o objeto dele. Supor um ser que não é objeto de outro, seria supor não existir ser objetivo nenhum. Logo que tenho um objeto, êsse objeto tem a mim para objeto dêle. Um ser não-objetivo, porém, é um ser irreal, insensível, meramente concebido; i. e, um ser simplesmente imaginado, uma abstração. Ser sensorial, i. é, real, é ser um objeto dos sentidos ou objeto sensorial e, pois, ter objetos sensoriais fora de si mesmo, obje tos de suas próprias sensações. Ser sensível é sofrer (expe rienciar).

O homem, como ser sensível objetivo, é um ser sofredor, e como sente seu sofrimento, um ser apaixonado. A paixão é o esfôrço das faculdades do homem para atingirem seu objetivo.

Contudo, o homem não é apenas um ser natural; êle é um ser natural humano. Ele é um ser por si mesmo e, portanto, um ente-espécie; como tal, tem de expressar-se e autenticar-se ao ser assim como ao pensar. Consequentemente, os objetos humanos não são objetos naturais como se apresentam diretamente, nem é o sentido humano, como é dado imediata e objetivamente, sensibilidade e objetividade humanas. Nem a natureza objetiva nem a subjetiva são apresentadas diretamente de forma adequada ao ser humano. E como tudo o que é natural tem de ter uma origem, o homem tem então seu processo de gênese, a História, que é para êle, entretanto, um processo consciente e, portanto, conscientemente autotranscendente. (Voltaremos a isso mais tarde.)

Em terceiro lugar, como êsse estabelecimento da situação de "coisa" e em si mesmo so' mente uma aparência, um ato que contradiz a natureza da atividade pura, tem de ser novamente anulado e a situação de "coisa" tem de ser negada.

ad 3, 4, 5, 6. (3) Essa alienação da consciência não tem só significado negativo, mas também positivo, e (4) tem êsse significado positivo não apenas para nós ou em si mesma, mas para a própria consciência. (5) Para a consciência a negação do objeto, ou sua anulação de si mesmo por êsse meio, tem significado positivo; ela sabe da nulidade do objeto pelo fato de alienar-se a si mesma, porque nesta alienação ela se conhece como o objeto ou, em benefício da união indivisível do ser-para-si-mesmo, conhece o objeto como êle próprio. (6) Por outro lado, êsse outro "momento" está igualmente presente, em que a consciência revogou e reabsorveu essa alienação e objetividade e está, assim, em casa em seu outro ser como tal.

Já vimos que a apropriação do ser objetivo alienado, ou a revogação da objetividade na situação de alienação (que tem de evoluir da não-identidade indiferente para a alienação antagônica de verdade) significa para Hegel, também, ou primordialmente, a revogação da objetividade, uma vez que não é o caráter determinado do objeto mas seu caráter objetivo que é o próbrio da alienação para a autoconsciência. O objeto, portanto, é negativo, auto-anulador, uma nulidade. Essa nulidade do objeto tem significado positivo, assim como negativo, para a consciência, pois êle é a autoconfirmação da não-objetividade, (XXVIII) o caráter abstrato dêle mesmo. Para a própria consciência, por conseguinte, a nulidade do objeto tem significado positivo por ela conhecer essa nulidade, ser objetivo, como sua auto-alienação, e saber que essa nulidade só existe graças à sua auto-alienação. . .

O modo em que a consciência é, e em que algo é para ela, o conhecimento. Conhecer é sua única ação. Assim, algo chega a existir para a consciência na medida em que ela conhece esse algo. Conhecer e sua única relação objetiva. Ela conhece (ou sabe), então, a nulidade do objeto (i. é, sabe a não-existência da distinção entre si mesma e o objeto, a não-existência do objeto para ela) por ela conhecer o objeto como sua auto-alienação. Isso quer dizer, ela conhece a si mesma (conhece, conhecendo como um objeto) porque o objeto é apenas uma imagem de um objeto, uma ilusão, que intrinsecamente nada é senão o conhecer-se que se defrontou consigo mesmo, estabeleceu em face de si mesmo uma nulidade, um "algo" que não tem existência objetiva fora do próprio conhecimento. O saber sabe que ao se relacionar com um objeto está apenas fora de si mesmo, aliena-se, e que ele só lhe parece como um objeto; ou, por outras palavras, que aquilo que lhe aparece como objeto é apenas ele próprio.

Por outro lado, Hegel diz, esse momento" está presente ao mesmo tempo; ou seja, que a consciência igualmente revogou e reabsorveu essa alienação e objetividade e, consequentemente, está em casa em seu outro ser como tal. Neste exame, todas as ilusões da especulação acham-se congregadas.

Primeiro, a consciência - autoconsciência - está em casa em seu outro ser como tal. Ela está, portanto - se nos abstrairmos da abstração de Hegel e substituirmos a autoconsciência por autoconsciência do homem - em casa em seu outro ser como tal. Isso subentende, primeiramente, que a consciência (saber como saber, pensamento como pensamento) alega ser diretamente o outro de si mesma, o mundo sensorial, a realidade, a vida; é o pensamento ultrapassando-se a si mesmo em pensamento (Feuerbach). Este aspecto é nela contido, na medida em que a consciência como mera consciência não é afrontada pela objetividade alienada mas pela objetividade como tal.

Em segundo lugar, isso implica no homem autoconsciente, na medida em que tenha reconhecido e revogado o mundo espiritual (ou o mundo espiritual universal de existência de seu mundo) o confirmar, a seguir, novamente, nessa forma alienada e apresentá-lo como sua existência verídica; ele o restabelece e alega estar em casa em seu outro ser. Assim, por exemplo, após revogar a religião, quando a reconheceu como produto da auto-alienação, em seguida ele encontra uma confirmação de si mesmo na religião como religião. Essa é a raiz do falso positivismo de Hegel, ou de sua meramente aparente crítica; o que Feuerbach denomina de pressuposto, negação e restabelecimento da religião ou teologia, mas que tem de ser concebido de maneira mais generalizada. Assim, a razão está em casa no absurdo como tal. O homem, que reconheceu estar levando uma vida alienada no direito, política, etc., vive sua vida verdadeiramente humana nessa vida alienada como tal. A auto-afirmação, em contradição consigo mesma, e com o conhecimento e a natureza do objeto, é, pois, o verdadeiro conhecimento e vida.

Não pode haver mais dúvida acerca da transigência de Hegel com a religião, o Estado, etc., pois esta mentira é a mentira de toda sua argumentação.

(XXIX) Se conheço a religião como autoconsciência humana alienada, o que conheço nela como religião não é minha autoconsciência, porém minha autoconsciência alienada nela confirmada. Assim, meu próprio eu, e a autoconsciência que e a essência dele, não são confirmados na religião, mas na abolição e revogação da religião.

Em Hegel, portanto, a negação da negação não é a confirmação do verdadeiro ser pela negação do ser ilusório. E a confirmação do ser ilusório, ou do ser auto-alienado em sua negação; ou o repúdio desse ser ilusório como ser objetivo existente fora do homem e independentemente dele, e sua transformação em sujeito.

O ato de revogação desempenha parte estranha, onde repúdio e preservação, repúdio e afirmação, se acham entre-laçados. Assim, por exemplo, na Filosofia do Direito de Hegel, o direito privado revogado é igual à moral, a moral revogada igual à família, a família revogada igual à sociedade civil, a sociedade civil revogada igual ao Estado e o Estado revogado igual à história mundial. Mas, concretamente, direito privado, moral, a família, a sociedade civil, o Estado, etc., permanecem; só se transformaram em "momentos", modos da existência do homem, sem validade quando isolados mas que mutuamente se dissolvem e geram um ao outro. Eles são momentos do movimento.

Em sua existência efetiva, essa natureza móvel é escondida. E pela primeira vez revelada no pensamento, na filosofia em conseqüência, minha verdadeira existência religiosa e minha existência na filosofia da religião, minha verdadeira existência política é minha existência na filosofia do Direito, minha verdadeira existência natural é minha existência na filosofia da natureza, minha verdadeira existência artística é minha existência na filosofia da arte, e minha verdadeira existência humana é minha existência na filosofia. Da mesma maneira, a verdadeira existência da religião, do Estado, da natureza e da arte, é a filosofia da religião do Estado, da natureza e da arte. Mas, se a filosofia da religião é a única existência verdadeira da religião, só sou verdadeiramente religioso como filósofo da religião, e contesto o sentimento religioso efetivo e o homem religioso concreto. Ao mesmo tempo, entretanto, eu os confirmo, em parte por minha própria existência ou na existência alienada com que os enfrento (pois essa é apenas, a expressão filosófica deles), e em parte em sua própria forma original, desde que são para mim o meramente aparente outro ser, alegorias, os contornos de sua verdadeira existência própria (i. é, de minha existência filosófica) disfarçada por cortinas sensoriais.

Da mesma maneira, a qualidade revogada é igual a quantidade, a quantidade revogada igual a medida, medida revogada igual a ser, ser revogado igual a ser fenomenal, ser fenomenal revogado igual a realidade, realidade revogada igual a conceito, conceito revogado igual a objetividade, objetividade revogada igual a idéia absoluta, idéia absoluta revogada igual a natureza, natureza revogada igual a espírito subjetivo, espírito subjetivo revogado igual a espírito objetivo ético, espírito objetivo ético revogado igual a arte, arte revogada igual a religião, e religião igual a conhecimento absoluto.

Por outro lado, essa revogação é a de um ente de razão; assim, a propriedade privada como pensamento é revogada pelo pensamento de moral. E mesmo que o pensamento imagina ser ele mesmo, sem intermediário, o outro aspecto de si mesmo, ou seja, a realidade sensorial, e considera sua própria ação como sendo ação real, sensorial, essa revogação em pensamento, que deixa seu objeto existindo no mundo real, acredita ter ela mesmo realmente superado ele. Por outro lado, como o objeto agora se tornou para ela um "momento" do pensamento, ele e encarado em sua existência real como confirmação do pensamento, da autoconsciência, da abstração.

(XXX) Sob um aspecto, portanto, o existente que Hegel revoga em filosofia não é a religião, Estado ou natureza real, mas a própria religião como objeto do conhecimento, i. é, a dogmática; e analogamente com a jurisprudência, a ciência política e a ciência natural. Sob este aspecto, pois, ele se coloca em oposição tanto ao ser real quanto à ciência direta, não-filosófica (ou os conceitos não-filosóficos) desse ser. Logo, ele contradiz os conceitos convencionais.

Sob o outro aspecto, o homem religioso, etc., pode encontrar em Hegel sua confirmação definitiva. (a) A revogação como movimento objetivo que reabsorve a alienação em si mesma. Este é o discernimento, expresso dentro da alienação, na apropriação do ser objetivo graças à revogação de sua alienação. E o discernimento alienado da objetificação real do homem, da apropriação real de seu ser objetivo pela destruição do caráter alienado do mundo objetivo, pela anulação de seu modo alienado de existência. Da mesma maneira, o ateísmo como anulação de Deus é o surgimento do humanismo teórico, e o comunismo como anulação da propriedade privada é a defesa da vida humana real como propriedade do homem. O último é, também, o surto do humanismo prático, pois o ateísmo é o humanismo atingido por intermédio da anulação da religião, ao passo que o comunismo é o humanismo atingido mediante a anulação da propriedade privada. Só pela revogação desse intermediário (que, no entanto, é condição prévia indispensável) pode aparecer o humanismo positivo autogerado.

O ateísmo e o comunismo, entretanto, não são uma fuga ou abstração, ou ainda perda, do mundo objetivo, que os homens criaram pela objetificação de suas faculdades. Eles não são um retrocesso empobrecido à primitiva simplicidade antinatural. São, antes, o primeiro surto real, a legítima concretização, da natureza do homem como algo real.

Hegel, pois, pelo fato de ver o significado positivo da negação auto-referível (apesar de sob forma alienada), concebe o auto-alheamento do homem, sua alienação do ser, perda de objetividade e realidade, como autodescoberta, mudança de natureza, objetificação e realização. Em resumo, Hegel concebe o trabalho como o ato de autocriação do homem (embora em termos abstratos); ele percebe a relação do homem consigo mesmo como um ser alienado e o aparecimento da consciência de espécie e da vida-espécie como a demonstração de seu ser alienado.

(b) Em Hegel, porém, à parte da, ou antes, como conseqüência da inversão já descrita por nós, esse ato de gênese surge, antes de mais nada, como ato meramente formal, por ser abstrato e por ser a própria natureza humana tratada como natureza abstrata, pensante, como autoconsciência.

Em segundo lugar, por ser formal e abstrata a concepção, a anulação da alienação torna-se confirmação da alienação. Para Hegel, esse movimento de autocriação e auto-objetificação, sob a forma de auto-alheamento, é a expressão absoluta, e por isso final, da vida humana, que tem seu fim em si mesma, está em paz consigo mesma e unida à sua própria natureza.

Esse movimento, em sua forma abstrata (XXXI) como dialética, é então visto como vida humana verdadeira, mas como, sem embargo, é uma abstração, uma alienação da vida humana, é visto como processo divino e, portanto, o processo divino da humanidade; é um processo por que passa o ser abstrato, puro e absoluto do homem, e não ele próprio.

Em terceiro lugar, esse processo tem de ter um portador, um sujeito, mas este emerge inicialmente como um resultado. Este resultado, o sujeito conhecer-se a si mesmo como autoconsciência absoluta, é portanto Deus, o espírito absoluto, a idéia que se conhece e se manifesta por si mesma. O homem real e a natureza real convertem-se em meros predicados, símbolos desse homem e natureza irreais e ocultos. Sujeito e predicado, por conseguinte, têm uma relação inversa entre si; um sujeito-objeto místico, ou uma subjetividade que ultra passa o objeto, o sujeito absoluto como processo de auto-alienação e o retorno da alienação para si mesmo, e, ao mesmo tempo, de reabsorção dessa alienação, o sujeito como esse processo; puro, incessante movimento de repetição dentro de si mesmo.

Primeiramente, a concepção formal e abstrata do ato de autocriação ou auto-objetificação do homem.

Visto Hegel igualar homem e autoconsciência, o objeto alienado, o ser real alienado do homem, é simplesmente consciência, a mera idéia de alienação, sua expressão abstrata, e por isso vazia e irreal, a negação. A anulação da alienação é também, portanto, apenas uma anulação abstrata e inane dessa abstração vazia, a negação da negação. A atividade repleta, viva, sensória e concreta da auto-objetificação reduz-se, destarte, a mera abstração, negatividade absoluta, uma abstração que é a seguir cristalizada como tal e concebida como uma atividade independente, como a própria atividade. Já que essa assim chamada negatividade é meramente a forma abstrata e vazia daquele ato real vivo, seu conteúdo só pode ser um conteúdo formal produzido pela abstração de todo conteúdo. Essas são, pois, formas de abstração gerais, abstratas, que se referem a qualquer conteúdo e são, portanto, neutras face a, e válidas para, qualquer conteúdo; formas de pensamento, formas lógicas destacadas do espírito e da natureza reais. (Exporemos, adiante, o conteúdo lógico da negatividade absoluta.)

A realização positiva de Hegel em sua lógica especulativa é mostrar que os conceitos determinados, as formas de pensamento fixas, em sua independência da natureza e do espírito, são resultado necessário da alienação generalizada da natureza humana e também do pensamento humano, e descrevê-los em conjunto como momentos do processo de abstração. Por exemplo, ser revogado é essência, essência revogada é conceito, o conceito revogado. . . a idéia absoluta. Mas, o que é a idéia absoluta? Ela tem que se revogar a si mesma se não quiser passar novamente por todo o processo de abstração, desde o começo, e contentar-se em ser uma totalidade de abstrações ou uma abstração capaz de se entender a si mesma. Mas, a abstração capaz de se entender a si mesma sabe que ela mesma nada é; ela tem de abandonar-se a si mesma e assim chegar a uma entidade que é exatamente o seu oposto, a natureza. Toda a Lógica, portanto, é uma demonstração de que o pensamento abstrato nada é por si mesmo, a idéia absoluta é nada para si mesma, e só a natureza é alguma coisa.

(XXXII) A idéia absoluta, a idéia abstrata que, "encarada sob o aspecto de sua unidade consigo mesma, é intuição" (Hegel, Encyclopaedia, 3ª ed., pág. 222) e "em sua própria verdade absoluta resolve permitir o momento de sua particularidade ou de determinação inicial a ser-outro, a idéia imediata, como seu reflexo, emergir livremente de si mesma como natureza". (ibid.) Toda esta idéia, que se comporta de maneira assim tão bizarra e caprichosa e tem dado aos hegelianos tão terríveis dores de cabeça, nada mais é do que abstração, i. é, o ser pensante abstrato. E a abstração que, tornada prudente pela experiência e esclarecida a respeito de sua própria verdade, resolve, em condições várias (falsas e ainda abstratas) abandonar-se e estabelecer seu outro ser, o particular, o determinado, em lugar de sua auto-absorção, não-ser, universalidade e indeterminação; e resolve deixar a natureza, escondida dentro dele somente como uma abstração, como um ente de razão, emergir livremente de si mesma. Isto é, ela decida renunciar à abstração e a observar a natureza livre da abstração. A idéia abstrata, sem a qual mediação se converte em intuição, não passa de pensamento abstrato que se abandona e opta pela intuição. Toda essa transição da lógica à filosofia da natureza é simplesmente a transição do abstrair para o intuir, extremamente difícil para o pensador abstrato efetuar e, por isso, descrita por ele em termos tão estranhos. O sentimento místico que impele o filósofo do pensamento abstrato para a intuição é o ennui [N.T.- tédio, aborrecimento, fastio], a aspiração de um conteúdo.

(O homem alienado de si mesmo é também o pensador alienado de seu ser, i. é, de sua vida natural e humana. Seus pensamentos são, em conseqüência, espíritos extrínsecos a natureza e ao homem. Em sua Lógica, Hegel aprisionou juntos todos esses espíritos, concebendo-os, um por um, primeiro como negação, i. é, alienação do pensamento humano, e depois como negação da negação, i. é, como revogação dessa alienação e expressão real do pensamento humano. Visto como, todavia, essa negação da negação é em si mesma restrita à alienação, ela é em parte uma restauração daquelas formas espirituais fixas em sua alienação e em parte uma imobilização no ato final, o ato de auto-referência como o verdadeiro ser dessas formas espirituais.[N12] Além disso, na medida em que essa abstração concebe a si mesma e experiência uma crescente fartura de si mesma, aparece em Hegel um abandono do pensamento abstrato que se movimenta unicamente na esfera do pensamento e é destituído de olhos ouvidos, dentes, tudo enfim, e uma resolução de reconhecer a natureza como um ser e apelar para a intuição.)

(XXXIII) A natureza também, contudo, tomada abstratamente, por si e rigidamente separada do homem, nada é para o homem. Não é mister dizer que o pensador abstrato entregue à intuição, intui a natureza abstratamente. Como a natureza acha-se encerrada no pensador de forma obscura e misteriosa até para ele mesmo, como idéia absoluta, quando a deixou surgir dele mesmo ela era ainda apenas natureza abstrata, a natureza como um ente de razão, mas agora com o significado de ser o outro ente do pensamento, é a natureza real, intuída, distinta do pensamento abstrato. Ou, usando linguagem humana, o pensador abstrato descobre, ao intuir a natureza, que as entidades que ele julgava estar criando do nada, da abstração pura, criando na dialética divina como produtos puros do pensamento interminavelmente em vaivém dentro de si mesmo e sem nunca levar em conta a realidade exterior, são simplesmente abstrações de características naturais. A natureza inteira, por conseguinte, reitera para ele as abstrações lógicas, mas de uma forma sensível, exteriorizada. Ele analisa a natureza e essas abstrações, uma vez mais. Sua intuição da natureza é simplesmente, pois, o ato de confirmação de sua abstração da intuição da natureza; sua representação consciente do processo de geração de sua abstração. Assim, por exemplo, o Tempo iguala-se à Negatividade auto-referível (loc. cit., pág. 238). Na forma natural, o Movimento revogado como Matéria corresponde ao Vir-a-Ser revogado como Ser. Na forma natural, a Luz é Reflexo-em-si. O corpo como Lua e Cometa é a forma natural da antítese que, segundo a Lógica, é de um lado o positivo alicerçado em si mesmo, e de outro o negativo alicerçado em si mesmo. A Terra é a forma natural do terreno lógico, como a unidade negativa da antítese, etc.

A natureza como natureza, i. é, na medida em que é distinguida sensorialmente daquele sentido secreto oculto dentro dela, a natureza separada e distinguida dessas abstrações é nada (uma nulidade demonstrando sua nulidade), é desprovida de sentido, ou tem apenas o sentido de uma coisa externa que foi revogada.

"No ponto de vista finito-teleológico, encontra-se a premissa correta de a natureza não encerrar em si a finalidade absoluta." (loc. cit., pág. 225.) Sua finalidade é a confirmação da abstração. "A natureza mostrou-se como sendo a idéia sob a forma de ser-outro. Como idéia é, sob esta forma, a negativa de si mesma, ou exterior a si mesma, a natureza não é apenas relativamente exterior vis-à-vis essa idéia, porém a exterioridade constitui a forma em que ela existe como natureza." (loc. cit., pág. 227.)

A exterioridade não deve ser aqui entendida como o mundo auto-exteriorizador dos sentidos, aberto à luz e aos sentidos do homem. Deve ser considerada na acepção de alienação, um erro, um defeito, que não devia existir. Pois o verdadeiro é ainda a idéia.

A natureza é aparentemente a forma de seu ser-outro. E como pensamento abstrato é ser, o que é exterior a ele por sua própria natureza é meramente coisa exterior. O pensador abstrato reconhece ao mesmo tempo que sensorialidade, exterioridade, em oposição ao pensa mento que fica em vaivém dentro de si mesmo, é a essência da natureza. simultaneamente, contudo, ele exprime essa antítese de tal maneira que essa exterioridade da natureza, e seu contraste com o pensamento, aparece como uma deficiência, e a natureza se distinguindo da abstração se afigura um ser deficiente. (XXXIV) Um ser deficiente, não simplesmente para mim ou para meus olhos, mas em-si tem algo fora dele que lhe falta. Isso equivale a dizer, seu ser e, outra coisa que não ele mesmo. Para o pensador abstrato, a natureza tem, pois, de revogar-se a si mesma, porque já está pressuposta por ele como um ser potencialmente revogado.

"Para nós, o espírito tem a natureza como sua premissa, sendo a verdade da natureza e, por conseguinte, seu primus absoluto. Nessa verdade, a natureza desapareceu e o espírito capitulou como a idéia que alcançou ser-por-si, cujo objeto, assim como o sujeito, é o conceito. Essa identidade e negativamente absoluta, pois enquanto na natureza o conceito encontra sua perfeita objetividade exterior, aqui sua alienação foi revogada e o conceito identificou-se a si mesmo. Ele é essa identidade somente na medida em que é um retorno da natureza." (loc. cit., pág. 392.)

"A revelação, como a idéia abstrata, é uma transição sem mediação para o vir-a-ser da natureza; como a revelação do espírito livre é o estabelecimento da natureza como seu próprio mundo, estabelecimento esse que, como reflexo, é simultaneamente a pressuposição do mundo como natureza existente independentemente. A revelação em conceito é a criação da natureza como o próprio ser do espírito, no qual ele adquire a afirmação e verdade de sua liberdade." "O absoluto é espírito; esta é a mais alta definição do absoluto."

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Notas:

[12] Isto é, Hegel substitui essas abstrações fixadas pelo ato de abstração rodopiando dentro de si mesmo. Ao fazê-lo, antes de mais nada ele tem o mérito de haver indicado a fonte de todos aqueles conceitos Inadequados que originariamente pertenciam a diferentes filosofias, e havê-los reunido e estabelecido a amplitude global das abstrações, em vez de uma determinada abstração, como o objeto da crítica. Veremos mais tarde por que Hegel separa o pensamento do sujeito. Já esta claro, todavia, que se o homem não for humano a expressão de sua natureza não poderá ser humana e, consequentemente, o próprio pensamento não poderá ser concebido como uma expressão da natureza humana, como uma expressão de um sujeito humano e natural, com olhos, ouvidos, etc., vivendo na sociedade, no mundo e na natureza. (retornar ao texto)

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